26 dezembro 2009

Uma Noite no Meio

Quando eu soube o que tinhas feito
Eu fora de mim fui até o banheiro
E sob a torneira que comigo chorava
Lavei minhas palmas e cada um de meus dedos
A água antes limpa com tua nódoa turvava-se
Amenizava assim minha dor e desespero
Purgava-me da podridão com que me contaminaras
Lasseava o nó atroz que me estrangulava o peito
Então em meu socorro o provérbio amigo veio
“Nada como um dia após o outro
E uma longa noite no meio”.


(Elcio Domingues)

02 março 2009

Aos Velhos no Espelho

Ontem, pela primeira vez, por um desses acasos-armadilha que a vida cuidadosa e pacientemente, ao longo de muitos anos, arquiteta, prepara, edifica e engatilha, ele foi visitar um depósito de velhos. Velhos que os jovens não querem, ou não podem querer, nem cuidar; que muitos escondem, velhos-abominação, velhos-vergonha, velhos-dor-e-solidão, estranhos velhos que são ao mesmo tempo memória e esquecimento, velhos que sintetizam e condensam em si toda a dor da solidão-ocaso.

Que triste a sina humana de sempre se morrer na dor. Sim, a dor, esse laço único, imenso e de força descomunal que, indiferente à nossa mais obstinada vontade, nos desdenha, iguala e reduz a um ponto só. Ou morre-se prematuramente, tragicamente, porque toda a morte é sempre uma tragédia, seja ela pontual ou gigantesca, mas sempre uma tragédia; ou morre-se assim, à míngua, entediado da rotina de se viver tanto, contudo, incompleto do que ele nem soube definir enquanto esteve imerso naquele obscuro depósito de velhos.

Seca-se lentamente de algo essencial, disso que não é nem saúde, nem dinheiro, nem nada que a cobiça ou que os instintos desejem; talvez isso que evapora, que esvanece, seja apenas o que se busca desde sempre e para sempre: a felicidade, o sorriso nos olhos, essa alegria genuína que, nesse ponto da vida pode ser contida, por mais exuberante que a palavra felicidade possa parecer, apenas no simples, minúsculo e pontual afeto, num gesto de carinho sincero, num deslizar de mãos pela face, encerrada num beijo de eu-te-amo-só-porque-te-amo, como o que ele recebeu dela, num dado e inesperado momento, daquela doce e gentil velha que esperava pela visita dos netos que jamais a visitariam, mas para quem ela mesma buscava as razões improváveis, talvez pela chuva que caía, talvez pelo temporal que viria, talvez pela correria da vida, talvez por todos os motivos que bastassem para justificar a indiferença e a pouca ou a inexistente gratidão daqueles que se originaram dela e de quem, certamente, algum dia ela cuidou e embalou e protegeu e acariciou e beijou e para quem ofertou tantas vezes aquele mesmo gesto simples, mas de uma eloqüência que dispensava qualquer palavra, agora destinado ao estranho sentado ao seu lado.

Ontem ele foi visitar um depósito de velhos e uma dor incômoda e latejante ainda inunda os seus sentidos e a sua consciência e escorre-lhe discreta pelos olhos e, assim como a vida, esse desconserto não tem dia marcado para acabar, nem para começar a secar, como tem a felicidade. Ah, essa estupidez humana, essa cegueira, essa insensibilidade absurda para o que é tão verdadeiramente essencial! Tudo isso estava ali, doidamente exposto, naquele depósito de velhos.

05 novembro 2008

Obama

Hoje, depois de muitos meses, volto para saudar esse evento mundialmente marcante. Não sei que conseqüências ele trará para o mundo, mas, espero sinceramente que o torne melhor. Refiro-me à eleição de Obama, que também é Husseim, como Sadam, aquele que, embora tirano, era mais coerente e menos hipócrita do que o tirano que o pendurou pelo pescoço; dessa vez, refiro-me ao abjeto Bush.

Torço para que esse meu colega de profissão (advogado) e tão mulato quanto eu tenha o máximo sucesso na condução das políticas interna e externa estadunidenses. Espero que ele limpe a sujeira de seu antecessor, que tenha êxito nessa "faxina" na imundície que o aristocrata sulista deixou.

O foco não pode ser a cor de sua pele, ao menos se quisermos realmente nos desapegarmos do condicionamento racista, mas a sua conduta, a sua inteligência e a sua sensibilidade, perante os inúmeros e graves problemas que terá de enfrentar.

Aliás, dois feitos mundialmente consideráveis de dois egressos dos oprimidos por suas origens, em menos de três dias: o campeonato de Hamilton, num meio eminentemente de brancos ricos e a vitória de Obama, num dos países ícones do racismo mundial.

Espero que logo a origem das pessoas, seja ela de qualquer natureza, não seja sequer um detalhe irrelevante. Que nos reconheçamos como semelhantes, capazes de amar, de odiar, de sorrir e de sofrer, apenas porque somos GENTE.

Em homenagem a todos os oprimidos, seja pelo motivo que for, republico um poema que escrevi quando assisti horrorizado a invasão do Iraque pelo ganancioso e sanguinário Bush e as conseqüências terríveis que isso causou.

Abraços a todos e saudades.


Miscigenação

Os nossos sangues se misturarão.
A despeito de teu desrespeito, de teu preconceito sujo,
injusto, ignóbil e imperfeito.
Os nossos sangues se misturarão.
Em nossa dança de exclusão em que me lanças ao nada,
ao desencanto, sem afagos, cantos ou pousadas,
sem amparo ou compaixão.
Os nossos sangues se misturarão.
Para teu desespero, sucumbido e imerso em insanável desmazelo.
Os nossos sangues se misturarão.
Ao definhares todos os dias em tua própria prisão e agonia,
conhecerás já sem alarde nossa insofismável realidade.
Os nossos sangues se misturarão.
Engana-te em tua cegueira, vaidade tola e confusão,
quanto ao azul do teu, mas, quanto ao vermelho do meu, não.
Os nossos sangues se misturarão.
Nas veias de nossos rebentos, ou sobre calçadas bombardeadas,
ou em leitos fétidos e pestilentos.
Os nossos sangues se misturarão.
No entrelace de taças perfumadas,
ou sobre os campos de superfícies turvadas,
por ódio, rancor e danação.
Os nossos sangues se misturarão.
Até que implores para que te livrem de tua sorte nefasta,
de tua consangüinidade maldita,
de tua genética aleijada,
de tua amargura inaudita.
Os nossos sangues se misturarão.
Por tua arrogância risível e tua empáfia inútil,
por teu egoísmo famélico e teu capricho fútil.
Os nossos sangues se misturarão.
Porque tua concupiscência de glutão não te basta,
para consagrares tua casta,
nem alcançares a perseguida redenção.
Os nossos sangues se misturarão.
Na confluência de todos os rios
que trazem em suas correntes navios
transbordantes de vida, graça e emoção,
os nossos deuses, que nos condenaram, enfim apaziguados,
pelo sangue de todos os degolados,
para nossa surpresa e salvação,
nos envolverão num só abraço e chorarão
apagando com suas lágrimas os traços da espada e do canhão,
do apego, da soberba e da ilusão,
e assim, sem que mais ninguém ou nada mais nos impeça,
para sempre,
Os nossos sangues se misturarão.
(Elcio Domingues)

12 abril 2008

Vendedores de Ilusões

Passei num vestibular concorrido pra entrar numa faculdade idônea! Precisei passar numa prova difícil, pra poder trabalhar! Trabalho práca! Preciso estudar feito louco, até hoje, pra ser um profissional bem sucedido e os clientes chiam quando cobro cinco por cento sobre o êxito das ações em que atuo e pago quase trinta por cento de Imposto de Renda retido na fonte. Entretanto, vejo esses "doutores em ciências ocultas" ganharem dez por cento da renda bruta dos fiéis, que pagam seus dízimos, todos os meses, com o coração em festa, em nome de uma lenda muito mal contada. E tem mais: por causa da influência política que a ICAR não imaginava um dia ter de dividir com os "dissidentes", todos juntos, com seus paus mandados amplamente metastasiados pelas bancadas e lobes nos Três Poderes, ainda garantiram a tal Imunidade Tributária, ou seja, não pagam um único centavo de imposto! Viva o "país do evangelho"!

Abraços!

Elcio Domingues.

06 dezembro 2007

Contos Mínimos II

Intimus

Eles se desejavam e isso era o que importava. O fato de ela ter outro era irrelevante para ambos. Culpa, só há quando a sede é pouca. Ela queria os dois; estava decidida a tê-los si-mul-ta-nea-men-te! A verdadeira natureza do que se chama de felicidade não pode ser mono, ela é sempre vária, multifacetada. Mas, só com ele tinha liberdade para ser sincera e assumir-se tal como de fato era. Intimidade e liberdade, essa mistura alquímica que a quase totalidade dos viventes jamais experimentará. O senso comum chafurda no limbo da hipocrisia e eles não estavam dispostos a enlamear seus pés, nem as suas almas imaculadas, que pairavam leves muito acima do taciturno rebanho que se arrasta para o abate.
(Elcio Domingues)

24 outubro 2007

Contos Mínimos

A Metáfora

Embora o desejasse avidamente, ela precisava do máximo de sigilo naquele relacionamento, mas não sabia como dizer isso a ele. Tinha medo da rejeição, então, já no primeiro encontro, pediu-lhe que a levasse para jantar num restaurante mineiro, bem retirado da cidade e não lhe disse uma só palavra enquanto comiam. Ela sabia que, além de desejável, ele tinha um talento incomum para construir e decifrar metáforas.

(Elcio Domingues)

19 agosto 2007

De Cansaço

Agora

Preciso de um lugar onde possa parar
Longe de tudo o que me tortura e domina,
Onde possa com água limpa lavar o sangue,
Lamber as feridas, sentar um pouco,
Retomar o fôlego, vislumbrar a campina,
Inundar-me de Sol, mergulhar em brisa,
E dizer a mim mesmo que tudo passou
E passa, e que nessa vida efêmera e sem graça,
Nem a pior das desgraças vale o medo,
Nem o desassossego, nem a lágrima amarga,
Que passeia pela minha cara, agora.

(Elcio Domingues)